A comunidade do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (InEAC-UFF) — englobando o Departamento de Segurança Pública, as Coordenações dos Cursos de Bacharelado e de Tecnólogo em Segurança Pública e Social, o Programa de Pós-graduação em Justiça e Segurança, seus Núcleos de Pesquisa, seus Projetos de Extensão envolvidos com a sociedade na luta pela distribuição igualitária de acesso a direitos — lamenta profundamente pelas vítimas de uma suposta política de segurança pública, de natureza violenta e homicida, que quase sempre vitimiza policiais também, como ocorrido ontem.

É com perplexidade e repúdio que temos acompanhado os eventos decorrentes da chamada “megaoperação policial” – Operação Contenção – ocorrida ontem nos Complexos do Alemão e da Penha, uma das mais letais da história recente do país. A operação que tinha como justificativa a contenção da expansão do Comando Vermelho e a sua cooperação faccional em outros estados da federação foi uma das maiores aberrações produzidas pelas forças de segurança do estado do Rio de Janeiro desde a redemocratização. Para além da situação do domínio dos grupos armados nos territórios periféricos da região metropolitana, a conjuntura política em que essa operação se coloca é no mínimo suspeita para que se compreenda os seus resultados. Um ambiente político-institucional que vem tentando reavivar a antiga gratificação (“faroeste”) por bravura e pagando bônus por fuzil apreendido, estimulando políticas de confronto direto armado em territórios urbanos densamente povoados.

Enquanto ainda contabilizamos as vítimas naturalizadas como “mortes” nos indicadores da operação nos noticiários, ao lado de prisões e número de fuzis, a comunidade do InEAC-UFF encontra-se consternada diante da brutalidade institucional promovida pela Administração do Governador Cláudio Castro, com anuência dos demais Poderes Constituídos do Estado do Rio de Janeiro responsáveis pela supervisão e monitoramento destas operações policiais.

Destacamos a importância em expor e combater a naturalização da desigualdade inconstitucional em classificar a nossa população entre aqueles que, segundo pronunciamento oficial do próprio Governador, merecem ser identificados enquanto “vítimas” e aqueles que merecem ser identificados como mortes desejadas, portanto explicitando que a polícia militar teria supostamente o dever de matar, a qualquer custo – seja ele as centenas de mortes de civis, seja a dos próprios agentes -, sem qualquer compromisso com a garantia da segurança da sociedade, tampouco com o efetivo combate ao crime organizado.

Repudiamos veementemente quaisquer políticas de segurança pública avessas à valorização da vida, da garantia dos direitos fundamentais e do tratamento igualitário, e do compromisso com uma administração de conflitos conduzida de maneira republicana e eficaz. Estas políticas de segurança pública promotoras de mortes não condizem com os valores insculpidos na Constituição Federal. Em especial, uma política de segurança pública produtora de um tratamento explicitamente desigual ao vitimar sempre pessoas pretas e pardas, na maioria homens jovens, nas favelas e territórios denominados “áreas de risco”.

Nossa solidariedade a todas as vítimas, a aos mais de 90 familiares das pessoas vitimadas nessa matança institucionalizada que já se apresentam ao IML para identificação dos seus, seus familiares e amigos, bem como às comunidades afetadas diretamente pela violência brutal das instituições de segurança pública, que culminou na paralisação da região metropolitana do Rio de Janeiro, uma das maiores do mundo. Lamentamos, em especial, os usos político-eleitorais destas operações promovidas pelo Estado do Rio de Janeiro contra sua população.

A dita “megaoperação” expressa o fracasso do investimento no armamentismo, da instrução orientada para a atuação de forças estatais como se fossem guerrilhas urbanas e da falta de limites à atuação das instituições de segurança pública, que tornaram reféns milhões de pessoas de toda uma região metropolitana, que viram seus cotidianos profissionais e existenciais alterados pelo medo. Estendemos nossa solidariedade à sociedade fluminense como um todo e convidamos para uma reflexão a respeito da segurança pública como um direito. É inadmissível que diante do momento político em que buscamos reforçar as instituições democráticas, a sociedade fluminense se depare cada vez mais com uma política de operações letais em diferentes partes da região metropolitana privando as pessoas do seu direito à vida, à liberdade, à saúde, à educação, ao trabalho, enfim, do direito à uma vida digna.

Destacamos a importância de uma reflexão crítica e já demonstrada empiricamente por meio de pesquisas conduzidas há mais de 30 anos por pesquisadores em diversos núcleos de pesquisa multidisciplinares institucionalizados nas Universidades para que esta política de extermínio escolhida, produzida e efetivada sistematicamente pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro seja adequadamente descrita e nomeada. Sobretudo pelos grandes meios de comunicação, que insistem em alimentar a retórica da “guerra”. Não se trata, portanto, de uma “guerra”, tampouco de uma “retomada de território” ou resposta a um suposto “terrorismo” das facções criminosas, mas de uma escolha consciente de grupos políticos institucionalizados, no poder Estatal, de promover o extermínio de uma população negra, localizada, e de não combater efetivamente as bases financeiras que movimentam e permitem as ações de grandes grupos de crime organizado, como por exemplo a operação Carbono Oculto deflagrada por uma força-tarefa com diferentes instituições federais e estaduais em São Paulo, cujo foco foi em identificar e desmontar esquemas de fraudes e lavagem de dinheiro no setor dos combustíveis que financiam as facções criminosas e demais envolvidos na existência dessas megaoperações financeiras.

Reiteramos que a segurança pública deve ser tratada como um direito fundamental. É neste sentido que podemos contribuir enquanto uma comunidade acadêmica sensível à complexidade da segurança pública no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro.

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